Projeto de arquitetura para as novas casas, coordenado pela Rosenbaum em parceria com o povo Yawanawá | Rosenbaum + Paulo Alves + Marcelo Pererira dos Santos + Marlucia Candida
O projeto de arquitetura da Casa Yawanawá foi uma iniciativa do Cacique Biraci Brasil, que viu a oportunidade de integrar este projeto ao Programa Minha Casa Minha Vida Rural e convidou a Rosenbaum para liderar esta missão.
Texto de Felipe Milanez – Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle)
“Lá na cidade eu vi que nosso povo estava não apenas perdendo a língua, mas perdendo o nosso espírito. Nossa conexão espiritual com nós mesmos, com a natureza, com o nosso mundo, com os nossos ancestrais.”
Biraci Brasil Nixiwaka – liderança Yawanawa
Os povos indígenas, em todo o mundo, enfrentam um grande desafio para sobreviver. Suas terras preservadas estão sempre na mira de grandes interesses, seja mineração, agronegócio, madeira, diversas formas de indústria. Por vezes, os indígenas conseguem impor suas vontade, seja impedindo os projetos de ocuparem seus territórios, seja recebendo benefícios. Porém, o problema não é apenas econômico, mas também cultural. Não é apenas nas cidades próximas onde os indígenas realizam trocas culturais, aprendem, trazem elementos novos para suas culturas e apresentam outros. Mas, hoje, com acesso a internet, TV, meios de comunicação, a pressão para ditar novos padrões de vida e organização é muito grande, principalmente nos jovens. O temor é a “perda da cultura”, uma profunda transformação que mudaria características essenciais dos modos de vida e organização social. Como projetar a vida para o futuro em meio a tantas mudanças?
A própria identidade indígena é a principal ferramenta. E o povo Yawanawa, ao longo de um século de contato próximo com a sociedade do entorno, muitas vezes traumático, aprendeu como caminhar nesse percurso tortuoso olhando para a frente. Conforme lembra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, índio não é um conceito que remete apenas, ou mesmo principalmente, ao passado – é-se índio porque se foi índio –, mas também um conceito que remete ao futuro – é possível voltar a ser índio, é possível tornar-se índio. Para ele, “A indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado.”
Biraci Brasil Nixiwaka, liderança Yawanawa, conta que, quando primeiro foi para a cidade, em 1980, foi para tentar uma vida melhor do a que tinha quando vivia na aldeia, dominada por patrões seringalistas e missionários evangélicos. A vida na aldeia era traumática, e mesmo sem reconhecer a situação de escravidão que estava submetido – o que ele viria a perceber após – sabia e sentia o sofrimento na pele. Ser índio era um estorvo, eram chamados de “caboco” e tratados com imenso preconceito. “Lá na cidade eu vi que nosso povo estava não apenas perdendo a língua, mas perdendo o nosso espírito. Nossa conexão espiritual com nós mesmos, com a natureza, com o nosso mundo, com os nossos ancestrais”, disse Nixiwaka (entrevista na aldeia).
O jovem líder, que havia partido junto de seu primo, Salles, filho de Raimundo Luis, o então cacique, decidiu, então, retornar. Voltar para a aldeia, voltar a ser yawanawa, voltar a, principalmente, ter controle social de seus destinos. “Eu voltei para a aldeia para poder fazer uma discussão ampla, para alcançarmos o resgate espiritual e cultural.”
O povo Yawanawa conseguiu libertar-se da dominação dos seringais, da dominação religiosa imposta pela missão norte-americana New Tribes Mission, conquistou direitos e seu território tradicional. E a principal arma foi a poderosa identidade política, a indianidade, a vontade de ser Yawanawa.
O povo Yawanawa hoje, nas palavras de suas lideranças, vive um “novo período”, uma “nova era”, que eles chamam de “a era do amor”. Eles percebem uma nova relação com o mundo do entorno, sem a agressividade de tempos passados, mas com interação e reciprocidade, diálogo e convivência. Sabem que os desafios são grandes, as pressões econômicas cada vez maiores, as seduções de consumo cultural estão presentes por todas as partes. Mas sabem que, no futuro, serão indígenas, não deixarão de ser Yawanawa.
No processo que Nixiwaka chama de “resgate”, que pode ser interpretado como uma nova transformação, com ressignificação de valores e reinserção de valores culturais em sua vida cotidiana, o espaço foi sempre um ponto fundamental. O território, o rio, a mata. E a aldeia. O local de vivência e convivência, o espaço de encontro e celebração. Nixiawaka, após longos períodos de ausência e viagens na defesa e luta pelos diretos, fundou com outras lideranças a aldeia “Nova Esperança”. Mais uma vez, uma sinalização para o futuro.
A construção física da aldeia com transformação cultural/espiritual, que pode ser vista como uma “reconquista” cultural, mas como uma nova transformação a partir do protagonismo yawanawa na sua autonomia de vida. A idéia de reconquista é de algo que existia, foi perdido e agora recuperado. Essa é a visão expressa pelas lideranças e xamãs Yawanawa.
É possível também analisar que não há uma “reconquista”, no sentido de imaginar que nada chegou a ser perdido. Por um período, os Yawanawa viveram sobre dominação e escravidão. Hoje, livres e autônomos, querem escolher seu modo de vida e o futuro das próximas gerações. Esse modo de vida envolve elementos que estão presentes no universo Yawanawa. Elementos que constituem a cosmovisão, os mitos, a etnohistória, a história de acordo com suas próprias perspectivas. Nesse sentido, a construção de uma aldeia totalmente reformulada, em novos padrões que fazem referência a história mais antiga do povo, é um elemento fundamental na constituição de uma perspectiva autônoma de futuro.
Quando o velho Yawa descreve como o povo Yawanawa vivia, em meio a ritos xamanicos e histórias e músicas, ele faz uma intepretação literária de uma forma de vida sofisticados, onde os conflitos são expostos, negociados, e um modo de vida é recriado. A interpretação inspira a imaginar uma forma de vida possível, que deve ser alcançada para a plenitude da alteridade Yawanawa. Ser Yawanawa envolve, nessa perspectiva Yawanawa, viver de acordo com uma ética histórica. Essa ética se assenta sobre o espaço, se constitui e se materializa no espaço da urbanidade vista como “tradicional”, com um arranjo específico da organização do espaço.
A idealização do projeto Yawanawa é uma conjunção de ideias e saberes que se encaixa na perspectiva da “Nova Era”, segundo os yawanawa. Uma era de um diferente relacionamento com a sociedade do entorno, novas alianças estratégicas e complementares.
O projeto é um ideal das lideranças do povo Yawanawa, materializado com ajuda de uma equipe envolvida, em um longo processo de aproximação e identificação, com o povo Yawanawa. As discussões, encontros e reuniões são realizadas de maneira a exercitar essa vontade Yawanawa de construção de um diálogo, onde o exercício do protagonismo do povo Yawanawa, não apenas centralizado nas suas principais lideranças, mas em um amplo sentido comunitário, ocorre de forma plena em busca de autonomia. São os Yawanawa que pensam, se preocupa, e tentam pensar formas de como irão sobreviver no futuro. Quais as perspectivas? Nesse momento, na atual fase, uma reconstrução do espaço é um aspecto fundamental para essa perspectiva futura de um novo protagonismo Yawanawa. Uma nova aldeia, com uma nova ética e organização que reconquista um modo de vida cultural, visto como uma tradição.
A aldeia e as casas, no padrão imaginado e idealizado pelos Yawanana junto da equipe coordenada pelo designer Marcelo Rosenbaum, são apenas um primeiro passo nesse sonho de vida Yawanawa. A construção do espaço é onde se assenta um projeto muito maior, que envolve práticas sociais, culturais e econômicas e que constituem uma perspectiva de futuro para novas gerações Yawanawa.
O Projeto Yawanawa foi construído em parceria com o povo Yawanawa, a partir de suas vontades, com autonomia e exercício do protagonismo de seu futuro. Porém, o projeto um modelo de referencia que pode servir de inspiração para desafios semelhantes enfrentados por outros povos indígenas na Amazônia.
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Uma equipe do Projeto auxilia, construindo junto dos yawanawa, como uma caravana. Mas é o protagonismo indígena mais uma vez sendo exercitado: os indígenas constroem, e com isso, reconstroem o conhecimento arquitetônico, acumulam saberes e práticas para o futuro. Oexercício da construção, e não apenas a moradia pronta, é parte significante do projeto.
Os próprios Yawanawa, auto organizados, serão auxiliados por 10 arquitetos e construtores. Os indígenas serão também co-responsáveis pelos materiais necessários. Serão eles a abrir picada na floresta para buscar madeira, apenas acompanhados de um engenheiro florestal cuja intenção é oferecer conhecimento técnico e científico que seja complementar ao tradicional para auxiliar o manejo das palhas, da paxiuba. Esse manejo madeireiro, que é realizado de forma tradicional pelos Yawanawa, pode vir a ser desenvolvido para, de acordo como interesse do povo Yawanawa, servir de subsidio para uma futura autonomia econômica
O espaço da aldeia vai constituir novas áreas comuns que haviam sido perdidas, deixada de lado nas recentes experiências de transformações culturais, onde o autoritarismo do seringal havia sido incorporado de forma mais visível do que a tradicional vida comunitária, igualitária e solidária.
O projeto promove a união das famílias, com casas aldeias e aldeias casas. Uma iniciativa dos indígenas, que perceberam uma transformação cultural em direção a um distanciamento um do outro, uma herança dos seringais e da missão evangélica, que querem agora por fim, incentivando uma nova forma de relacionamento baseado em suas tradições.
O projeto oferece transformações práticas também, como o resgate do fogão a lenha, com novas tencologias que eliminam o excesso de fumaça. E o fim do uso do gás, que envolve custos econômicos excessivos, uma logística complexa de reposição e de descarte, produzindo lixo. Ao invés de lixo, o fogão a lenha deixa resíduos orgânicos, promove o trabalho comunitário e auxilia no manejo da flora.
O Projeto Yawanawa é composto por ideias que se convencionou chamar de “sustentáveis”, mas que nada mais são do que a própria reconquista da autonomia do modo de vida. A aldeia será envolta em uma agrofloresta, por exemplo. Em algumas perspectivas científicas, a própria amazônia, em si, é uma agroflorestal, como já escreveram William Balée, que a chama de “floresta antropogênica”, uma mata cultural, e Michael Heckenberger, com o conceito de “floresta parque”, um parque cultural. Essa forma de agricultura prove alimentos e alimenta a biodiversidade. Diversidade que não deve ser vista apenas como biológica, na realidade, mas como social e culturalmente construída ao longo da história. O uso das tradições Yawanawa oferece possibilidades muito mais sofisticadas do que a “sustentabilidade” apenas como é popularmente conhecida: não é apenas sustentável, em termos culturais e ecológicos. Mas é enriquecedor, no sentido de que as transformações culturais serão mais ricas, autônomas e sofisticas, e a construção da biodiversidade adubada e incrementada.
A autonomia, elemento dessa forma sustentável de vida, também é refletida na menor dependência de elementos e bens externos: a comunidade não vai precisar trazer mais nada de fora, tudo o que precisam estará dentro do seu território, como sempre foi. Novos conhecimentos e práticas serão apenas agregadas, de forma a contribuir ao conhecimento indígena e da maneira como os Yawanawa perceberem serem necessárias, como saneamento, tratamento de água e tecnologias da permacultura, sempre aliadas ao conhecimento tradicional.
A indianidade é um projeto de futuro. E o Projeto Yawanawa é uma constituição para o futuro de um povo.
Balée, W. 1994. Footprints of the Forest: Ka’aporEthnobotany – the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People. Columbia University Press, New York.
Heckenberger, M.J., Kuikuro, A., Kuikuro, U.T., Russell, J.C., Schmidt, M., Fausto, C.,
Franchetto, B., 2003. Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland?
Science 301, 1710–1714.
Heckenberger, M. J. 2005 The ecology of power: culture, place, and personhood in the Southern Amazon, AD 1000–2000. New York, NY:Routledge.
Viveiros de Castro, E. 2011. A indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado. Entrevista com Eduardo. Prisma Jurídico, vol. 10, núm. 2, julho-dezembro, 2011, pp. 257-268.Universidade Nove de Julho, SP.
Às margens do rio Gregório, na cidade de Tarauacá, fica a terra indígena dos Yawanawás, o primeiro povo a conseguir reconhecimento do estado do Acre e oficializar seu território no Brasil. Da vontade de manter viva uma cultura, uma história, veio a organização em suas três aldeias, Mutum, Escondido e Nova Esperança. Seus pouco mais de 600 habitantes carregam consigo mais do que o DNA de seus antepassados. Sabem que depende deles a perpetuação de seus saberes e de sua língua materna. É por isso que no coração da floresta, despidos de medo, recebem o homem branco numa grande festa de acolhimento, de abraço, de respeito à vida.
Arquitetura
Rosenbaum
Paulo Alves
Marcelo Pereira dos Santos
Anderson Amaro Lopes de Almeida – arquiteto convidado pela da SEHAB ACRE
Marlúcia Candida de Oliveira Neves – arquiteta pesquisadora das tipologias amazônicas
Argumento
Felipe Milanez – Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle)
Fotos
Genevieve Bernardoni